Chá Comigo, Podcast de Tsering Paldron

Ainda há lugar para a alegria?

October 27, 2022 Tsering Paldron Season 1 Episode 23
Chá Comigo, Podcast de Tsering Paldron
Ainda há lugar para a alegria?
Show Notes Transcript

Depois do Covid, a guerra... Uma guerra inesperada que teima em durar e tem consequências devastadoras no mundo inteiro. Um planeta conturbado, uma economia em crise, um clima em mudança... numa conjuntura destas, em que instabilidade presente e tenebrosos cenários futuros nos atormentam, será possível, desejável, politicamente correto até, falar de alegria?

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Depois do Covid, a guerra... Uma guerra inesperada que teima em durar e tem consequências devastadoras no mundo inteiro. Um planeta conturbado, uma economia em crise, um clima em mudança... numa conjuntura destas, em que instabilidade presente e tenebrosos cenários futuros nos atormentam, será possível, desejável, politicamente correto até, falar de alegria? 

De há 3 anos para cá todos sentimos mais instabilidade. Parece que todas as coisas que dávamos por adquiridas deixaram de estar garantidas. Fazer planos para uma viagem, um evento, qualquer coisa que esteja a algumas semanas de distância, parece agora mais incerto do que antes. 

A maioria de nós não se dá bem com incertezas. Não poder confiar deixa-nos ansiosos e tensos. Não tenho números, mas imagino que a ansiedade e a depressão aumentaram consideravelmente nos últimos tempos. Não que dantes tudo fosse permanente e estável e, de repente, tudo tenha mudado. A verdade é que tudo sempre foi incerto e impermanente só que não estávamos tão cientes dessa realidade como agora. 

Então, como podemos contrariar esta tendência e encontrar alguma paz, alguma serenidade e, até talvez, alguma alegria?

A minha primeira estratégia não é nova, mas aplica-se agora mais do que nunca. Em tempos normais não vejo notícias. Mas estes não são tempos normais. Então o que faço é escolher alguns canais de notícias fidedignas (sejam publicações online ou canais televisivos) e ficar a par dos últimos desenvolvimentos, uma vez por dia ou menos, consoante o desenrolar dos acontecimentos. Tenho sempre em mente que não existem notícias 100% fidedignas. A “propaganda” não existe só do lado da Rússia. Ok, a manipulação da verdade lá é mais descarada, e como é dos “inimigos” chama-se propaganda, mas estou ciente de que a forma como os factos são apresentados do lado de cá também não é absolutamente imparcial.

Assim, poupo-me muita ansiedade e também mantenho alguma distância saudável em relação ao que se passa, evitando cair na excessiva parcialidade de acreditar que existem “bons” e “maus” – em que os primeiros são imaculadamente bons e os últimos irremediavelmente pérfidos e tresloucados. 

Outra coisa que é sempre válida, mas convém relembrar agora mais do que nunca: não adianta especular nem preocuparmo-nos sobre o que vai acontecer. Podemos fazer o que está ao nosso alcance, em função da situação presente, claro, mas morrer por antecipação é inútil. E não só é inútil como gera mais ansiedade e preocupação, fazendo-nos inclusivamente tomar más decisões.

A menos de sermos completamente insensíveis, é impossível não nos sentirmos incomodados com as imagens de destruição, morte e sofrimento que nos chegam e o pensamento do quão desnecessários são. Como se não bastassem já os sofrimentos inevitáveis da doença, da morte, dos cataclismos naturais e outras coisas que não conseguimos controlar, e ainda fosse necessário acrescentar-lhes os horrores de uma guerra completamente escusada. 

Pessoalmente, quando contemplo estas coisas, além da compaixão pelo sofrimento imediato dos envolvidos, de um lado como de outro, sinto o quanto os ensinamentos budistas são válidos e pertinentes. Porque enquanto não tivermos vencido, dentro de cada um de nós, a cegueira do egoísmo, do desejo, do orgulho e da inveja, os conflitos, sejam eles pequenos ou grandes, não irão desaparecer.

Assim, o desânimo que sinto por ver que a humanidade continua a não ter aprendido com as lições do passado, transforma-se numa motivação de continuar a trabalhar sobre mim mesma e a inspirar os outros a fazerem o mesmo. E o sentimento de impotência perante o que se passa no mundo desagua numa vontade de ir mais além, em vez de cair na depressão e na paralisia.

Depois de tudo isto, será que ainda há lugar para a alegria? Parafraseando a expressão bem tuga que diz: “tristezas não pagam dívidas”, eu acho que sim. Porque a tristeza não acaba com a guerra, não impede a destruição, nem enche o depósito. Mergulhar na tristeza, na depressão e na ansiedade não serve nenhum propósito, nem para nós, nem para os outros. Parece-me mais produtivo, fazer o que está ao nosso alcance para tornar este mundo melhor – e isso inclui sorrir mais. 

Recentemente, pediram-me para falar sobre como cultivar a alegria. No contexto do treino budista, há quatro sentimentos a cultivar, habitualmente chamados os “Quatro Pensamento Ilimitados”: o amor, a compaixão, a alegria e a imparcialidade. Os dois primeiros dispensam explicações; a imparcialidade consiste em ter uma atitude menos partidária na nossa relação com as pessoas, fazendo menos distinções entre o bem que desejamos aos próximos e o que desejamos aqueles com quem não nos entendemos. Há páginas e páginas sobre como desenvolver o amor e a compaixão, como treinar-se na imparcialidade. Mas, quanto à alegria, ela é descrita como o regozijo que sentimos ao ver alguém feliz. Ponto final.

Talvez deva começar por esclarecer que a alegria de que se trata aqui não é a excitação pontual que sentimos quando ouvimos uma boa notícia. É um sentimento mais profundo, menos circunstancial. De acordo com o pensamento budista, esta alegria, tal como o amor e a compaixão, fazem parte da nossa natureza e são sentimentos espontâneos. Porém, por estarmos mais habituados aos problemas e às complicações da nossa mente do que a eles, temos de usar estratégias para os trazermos à superfície e nos habituarmos a eles.

Então, elaborei uma pequena lista, não exaustiva, e que não segue qualquer ordem especial, de coisas que ajudam a sentir mais alegria. 

#1 A primeira é o hábito de nos sentirmos gratos. Eu sei que se fala muito sobre a gratidão e que se tornou quase redundante evocá-la. No entanto não posso deixar de lembrar o quanto contribui para nos fazer apreciar ao seu justo valor tudo aquilo de que usufruímos. Recentemente li esta citação que me fez todo o sentido: “Se não vivemos o agora, porque planeamos para o futuro? Se não apreciamos o que temos, para que queremos mais? Se não conseguimos ver o que está à nossa volta, para que olhamos para o que está longe? Estes hábitos são a causa das nossas lutas, dos nossos problemas e do nosso sofrimento.”

 Então, substituir a nossa insatisfação habitual por uma gratidão justificada traz muita alegria. Quando penso em diferentes passagens da minha vida, sinto uma imensa gratidão por tudo aquilo que possuo, por tudo aquilo a que tive acesso, mas também, frequentemente, por tudo aquilo que me foi negado e que teria sido desastroso se tivesse acontecido. Quão frequentemente, no calor das emoções, desejamos ardentemente coisas que parecem essenciais na altura, mas que, a médio ou longo prazo, seriam muito más!

 Quaisquer que sejam as suas reflexões pessoais, a gratidão é das melhores maneiras de cultivar a alegria. Apreciemos o que temos, o mais frequentemente e o mais sinceramente possível, até que se torne uma reação normal e um sentimento habitual em nós.

 #2 A segunda coisa – que também não constitui uma surpresa – é a meditação. Com todo o mediatismo que o Mindfulness tem tido, a meditação tem sido apresentada assim como uma espécie de Spa da mente, uma forma de relaxar, reduzir o stress e tratar a ansiedade. E embora tudo isso seja verdade, essa é uma visão deveras reducionista do valor da meditação, pelo menos do ponto de vista budista.

 O primeiro tipo de meditação, aquele exercício em que pousamos a atenção, por exemplo no vai e vem da respiração, ajuda a abrandar o pensamento discursivo e a agitação da mente, permitindo-nos relaxar e permanecer mais no momento presente do que nas elucubrações – geralmente ansiosas – da nossa mente. Segundo o exemplo dado pelo Buda ao comparar a mente turbulenta à água turva de um lago agitado, assim que esta está em repouso, e as partículas de lodo caem no fundo, a transparência natural da água revela-se. O mesmo é suposto acontecer com a nossa mente, e é então que um segundo tipo de meditação pode acontecer, uma familiarização com a nossa natureza mais profunda que, como mencionei atrás, possui naturalmente as qualidades de amor, compaixão, imparcialidade e alegria.

Por isso, quando meditamos, acedemos naturalmente a essa dimensão interior onde a alegria está sempre disponível, independente de qualquer circunstância ou acontecimento. 

 #3 Em terceiro lugar, acho que todos reconhecemos a alegria que sentimos ao saber que fomos úteis a alguém. Quer seja um ato tão simples como indicar o caminho a um desconhecido na rua, ou algo mais exigente em tempo ou energia. Ajudar os outros nem sempre é fácil, sobretudo quando se trata de pessoas muito próximas, membros da família ou amigos. Em virtude dos laços emocionais e, às vezes, da longa história comum, há muita coisa à mistura. Por isso, devemos considerar igualmente os mais simples atos de bondade e de simpatia para com desconhecidos. Um gesto amável, um sorriso simpático, uma palavra conciliadora, são coisas simples e pouco exigentes que fazem bem aos outros – e a nós também.

 Se pudermos fazer mais melhor, mas comecemos por, intencionalmente, decidir cada manhã que usaremos cada oportunidade para sermos prestáveis e simpáticos para com os outros. Como tudo se torna mais fácil com a prática, não importa se começamos por atos pequenos, por coisas aparentemente sem importância. Como tudo e todos somos interdependentes, é impossível sabermos quais as ramificações do nosso sorriso, como poderá mudar o dia de alguém. Tenho a certeza de que ficaríamos bastante surpreendidos se soubéssemos. 

 #4 Vivemos numa cultura em que a ação é valorizada acima de tudo. No Budismo, porém, o valor da intenção supera o da ação. Para nós isto pode parecer estranho, mas se refletirmos melhor, chegaremos à conclusão de que faz sentido. Assim, quando nos regozijamos com atos de bondade e altruísmo, mesmo que não sejam nossos, podemos sentir uma enorme alegria e um sentimento de nobreza e dignidade que são consonantes com a nossa natureza profunda. 

 Ler ou assistir a documentários que retratam a vida de pessoas cuja vida e as ações foram altruístas e inspiradoras é uma maneira de cultivar essa alegria profunda. OS ensinamentos budistas dizem, inclusivamente, que o poder do regozijo iguala o da própria ação. 

 #5 A expressão usada em tibetano para designar a atitude interior de bondade fundamental é frequentemente traduzida por compaixão. Porém, a palavra tibetana Nyingdjé poderia ser traduzida mais à letra por Nobreza de Coração.

 Relembro que estou aqui a falar de uma atitude interior que se exprime naturalmente através dos “Quatro Pensamentos Ilimitados” de que já falei – o Amor, a Compaixão, a Alegria e a Imparcialidade. 

 Quando o Buda se dirigia à comunidade, dizia “Filhos e filhas de Nobre Família”. Sendo que a sua comunidade integrava pessoas de todas as castas, mesmo aquelas que, até então, sempre tinham sido impedidas de seguir um caminho espiritual, a nobreza a que ele se referia não era a do sangue, mas a do coração, da atitude interior. 

 “Só quando tomamos consciência do nosso papel, mesmo o mais humilde, podemos ser felizes. Só então podemos viver em paz e morrer em paz, porque o que dá sentido à vida, dá sentido à morte.” – dizia Saint-Exupéry. Assim, seja o que for que fazemos, profissional, social, ou humanamente, temos de procurar fazê-lo a partir dessa nobreza interior, com “brio” e da melhor forma possível. É possível retirar alegria de um trabalho que não gostamos de fazer, por exemplo, se tentarmos fazê-lo bem feito. Ao inverso, mesmo algo que gostamos de fazer não nos traz qualquer alegria se formos desleixados.

 #6 Na mesma ordem de ideias, sentir que tivemos uma atitude correta, quando, por exemplo, somos confrontados com uma escolha difícil, é outra coisa que nos traz uma grande satisfação interior. 

As gerações dos meus pais e avós tinham um grande sentido de honradez e o facto de terem a certeza da honestidade das suas ações dava-lhes grande satisfação. Se falo das gerações passadas é porque o exemplo deles está bem presente em mim e, talvez também, porque esses valores que eram a base da sociedade, então, deixaram de estar “na moda”. Como dizem os americanos, deitamos fora o bebé com a água do banho. Ao descartarmos muitas das convenções que espartilhavam a nossa sociedade, descartámos também certos valores humanos essenciais. 

 Porém, uma vez que estamos a falar da nossa natureza fundamental, essa Nobreza de Coração é intemporal e não está sujeita a circunstâncias externas. Assim sendo, a qualquer momento e em qualquer ambiente social em que nos encontremos, podemos sempre agir de forma compatível com ela e daí retirarmos uma profunda satisfação.

 #7 Uma coisa que me traz sempre uma grande alegria é interagir com pessoas positivas. Por exemplo, no final dos ensinamentos, retiros de fim-de-semana, conferências, palestras ou seminários em que participo, como ouvinte ou oradora, evocando em conjunto temas positivos que apelam às emoções mais nobres e verdadeiramente humanas, há sempre um sentimento extraordinariamente positivo e inspirador. O facto de passarmos algumas horas a meditar e/ou a evocar temas que fazem “vibrar” os acordes mais nobres no nosso coração, cria uma sinfonia que nos eleva e nutre.

 É certamente por isso que, seja qual for a tradição espiritual, todas elas sempre valorizaram o facto das pessoas se encontrarem para orarem, por exemplo. O efeito de grupo é poderoso.

 Se queremos encontrar essa alegria profunda que reside dentro de nós e não depende de nada, temos de a cultivar, reconhecendo o que a alimenta e o que a faz definhar e fazendo as nossas escolhas em conformidade. 

 #8 Por fim, quero ainda lembrar que, de acordo com os neurocientistas, o nosso cérebro tem um enviesamento negativo, de forma que retém mais as coisas negativas – que ele vê como uma ameaça para a sobrevivência – do que as positivas. Isto é o que os leva a dizer que o nosso cérebro está programado para a sobrevivência e não para a felicidade. 

 Gosto da imagem dada por Rick Hanson, um psicólogo americano que diz que o nosso cérebro é como velcro para o que é negativo e teflon para o que é positivo. Por isso, temos de exercer uma atenção deliberada e consciente para nos determos no que nos faz feliz e abrir mão mais prontamente do que nos faz sofrer. 

 Como tudo se torna mais fácil com a prática, mesmo que a alegria seja difícil de início, com o tempo, tornar-se-á parte da nossa maneira de ser e surgirá espontaneamente. 

 E pronto, espero que este chá de hoje contenha alguma dica útil. Eu, pelo meu lado, tenho o coração cheio.